Artigo de terapeuta de família: Feridos que Curam

Mais um texto de reflexão para o IV Encontro de Líderes no Sertão, que acontece em 19/10, na Paraíba. Nele podemos pegar uma edificante carona. Foi escrito pela psicóloga especializada em terapia familiar, Isabelle Ludovico. Diz: "Provérbios de Salomão nos convidam a “entender o nosso próprio caminho” (Pv 14:8) e “estar atentos para os nossos passos” (Pv 14:15).

De fato, a maturidade provém da capacidade de compreender a nossa história e integrar as peças esparsas do quebra cabeça que é a nossa existência para enxergar o quadro completo. As experiências marcantes da nossa vida precisam ser consideradas com reverência para encontrar o seu sentido mais profundo e aprender com elas. Tempo e atenção são necessários se queremos evitar a superficialidade."

Fomos criados à imagem de Deus, que é Luz. Assim, quanto mais nos aproximamos dele numa atitude contemplativa, mais enxergamos a nossa própria realidade.

O olhar amoroso de Deus nos permite superar o medo da rejeição e tirar as nossas máscaras para reconhecer tanto a nossa luz quanto a nossa sombra. Percebemos nossos limites, feridas, mecanismos de defesa e incoerências, mas também nossa aspiração por amor, alegria e paz, nossa capacidade criativa e relacional, nossa busca de sentido existencial. Identificamos, perplexos, a coexistência simultânea e sistêmica de alegria e tristeza, prazer e dor, sofrimento e paz, amor e solidão.

Perceber esta condição da nossa humanidade entra em choque com o desejo de nos apegar a um estado mental dominante e obsessivo como a busca da felicidade permanente.

Nossa sociedade a define como a ausência de dor e, para isso, construímos um castelo forte onde estamos protegidos, mas também enclausurados. Poupar-nos do sofrimento acaba nos privando da alegria, pois estes dois sentimentos são parceiros inseparáveis nesta vida.

Nossa cultura prega uma felicidade artificial mantida com pílulas que anestesiam a dor, camuflando a nossa inescapável condição de mortalidade e fragilidade. Solitários e carentes, buscamos compensar o nosso vazio interior mediante um consumismo compulsivo. O desejo mais profundo de amar e ser amado requer a disposição de baixar as defesas e nos torna vulneráveis.

Como diz uma música popular: “Quem quiser aprender a amar, vai ter que chorar, vai ter que sofrer...”. As feridas mais profundas e dolorosas não provêm de acidentes que nos aconteceram, mas do amor. O amor transforma nossa personalidade e nossa percepção. Ele nos arranca de um mundo unidimensional em preto e branco para nos transportar num universo de cores brilhantes e paisagens sempre renovadas.

Quando o amor se retrai, sofremos a dor da perda. A alegria do encontro é proporcional à dor do desencontro. Como diz o teólogo John Main, precisamos diferenciar feridas e machucados. Os machucados como o fracasso num teste, uma derrota financeira, uma expectativa frustrada, são sofrimentos provisórios e superáveis. As feridas nos marcam para sempre. Elas modificam nossa percepção íntima e o fundamento da nossa identidade.

Uma ferida significa que nada será como antes. O tempo apaga os machucados, não cura as feridas. Somente a imersão no amor absoluto de Deus pode curá-las. É preciso mergulhar na morte de Cristo para experimentar a sua ressurreição. O significado das nossas feridas emerge quando as vivenciamos na sua relação com outros eventos e padrões da nossa vida. Conforme a maneira como lidamos com as nossas feridas, podemos nos tornar feridos que ferem ou feridos que curam. A Bíblia fala de dois tipos de tristeza: uma tristeza ”mundana” que leva à auto comiseração, nos faz assumir o papel de vítima e “produz morte”; uma tristeza na perspectiva de Deus que gera humildade, transformação e vida (2 Coríntios 7:10).

Mergulhando na história da nossa vida, encontramos momentos dramáticos em que tivemos que fazer a escolha crucial de nos tornarmos amargurados por nossas feridas ou feridos que curam. O filme “Patch Adams: o amor é contagioso” fala de um homem que fez a escolha de ser um ferido que cura e quase desistiu quando uma nova ferida o empurrou na beira do precipício. Para o seu próprio bem e o bem das pessoas à sua volta, ele finalmente escolheu seguir o princípio bíblico de “vencer o mal com o bem”(Romanos 12:21). Na maioria das vezes, optamos por uma solução intermediária mesclando sentimentos de mágoa e desejo de superar, passando alternativamente de vítima a protagonista.

Nossa experiência pessoal de feridos curados pelo amor incondicional de Deus é que nos permite aliviar o sofrimento de outros. Enquanto perseguirmos nossa felicidade como prioridade absoluta, iremos fazer isto às custas do bem estar do outro. Mas ao buscar minorar a dor do nosso próximo, encontraremos a plenitude de alegria para a qual fomos criados. Ao acolher a realidade com todas as suas facetas, não podemos deixar de perceber o próprio Deus. Cristo é a Verdade e a Vida. Por isto, ao optarmos pela verdade encontraremos a Cristo, assim como através das coisas bonitas podemos enxergar a própria beleza.

A cruz de Cristo proclama que a vida não se preserva negando a morte, mas acolhendo o ciclo de morte e renascimento. Por isso, somos chamados a “levar sempre no corpo o morrer de Jesus para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo” (2 Coríntios 4:10).

Assim, em vez de fugir do sofrimento por meio de uma vida artificial, podemos superá-lo com o bálsamo do amor de Deus que transforma o mal em bem.

Precisamos olhar para os retalhos espalhados da nossa vida na perspectiva de Cristo que venceu o mal e a morte. Assim podemos costurá-los para formar uma colcha que reflete a obra de arte única que é a nossa existência à luz do amor de Deus e na dependência do Espírito Santo.

(Por Isabelle Ludovico da Silva, psicóloga com especialização em Terapia Familiar Sistêmica. )

Atualizada: Domingo, 01 Outubro 2023 11:07
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