Eleições: Saneamento básico ou "esse cara sou eu"

Logo que pisei o primeiro degrau para embarcar no ônibus, ouvi o refrão recitado pela voz forte do cobrador: "Esse cara sou eu". Considerando que em coletivos do Rio acontece de tudo, não estranhei.

O mais provável é que ele estivesse falando ao celular com o alvo de uma virtual conquista amorosa. Quando cheguei à catraca, veio a surpresa, na forma de um panfleto eleitoral com a foto de um candidato a governador na parte de cima e a dele, o cobrador, na parte de baixo. Deputado Federal, que um cara como ele não podia se permitir menos. Ele repetia o mantra e apontava para o papel, confirmando que se tratava dele mesmo. Já vi de tudo em ônibus na Cidade Maravilhosa, mas algo do gênero foi a primeira vez. Não pude deixar de fazer a pergunta óbvia:

"Tudo bem, o cara é você mesmo. Qual sua principal proposta de trabalho, se eleito"? Ele não esperava a interpelação, mas teve presença de espírito suficiente para responder: "Apoio ao deficiente físico". Ponderando que muita gente já trabalhava nessa área, com ou sem mandato parlamentar, pedi que fosse mais específico. Desconfiado, ele foi mais genérico ainda: "Saúde, educação e moradia". Foi o bastante para ele perder um pouco provável - mas não impossível - eleitor.

Futuro legislador

Na realidade, a resposta esperada era meio como acertar na megasena. Caso o "essecarasoueu" dissesse duas palavrinhas mágicas, eu até consideraria a hipótese de votar nele, embora vendo que, como um futuro legislador, ele já começava a jornada legislando em causa própria, misturando o público com o privado no ato de fazer campanha em horário de trabalho. Esse e até outros deslizes eu relevaria, se ele respondesse que ia lutar para que saneamento básico não fosse uma figura de pura ficção na realidade de milhões e milhões de brasileiros. Mesmo se ele dissesse que usaria todo o tempo de seu mandato para canalizar apenas uma vala negra numa comunidade qualquer da Baixada Fluminense ou da capital, eu já ficaria interessado em conhecê-lo melhor.

O problema do Brasil não é falta de dinheiro

O problema brasileiro é falta de projeto, planejamento, execução e manutenção. Fora, naturalmente, a existência do mal maior da corrupção. Uma parcela enorme da população brasileira convive com a ausência absoluta de esgotamento sanitário e acesso a água potável, devidamente tratada. Conheço o problema in loco, porque ao lado do primeiro barraco em que minha família morou no Rio de Janeiro corria uma vala negra, a céu aberto, se é que uma coisa não é sinônimo da outra. A família se uniu e realizou ela mesma a canalização. Em todas as favelas em que trabalhei como pastor, o problema existia e, em várias outras, continua existindo.

Baixada Fluminense

Trabalhando hoje na Baixada Fluminense (Belfort Roxo), deparo-me de novo com o problema. Além das ruas esburacadas, sem pavimentação, do lixo espalhado pelas ruas, do transporte precário e da criminalidade, estão lá os valões sem qualquer tratamento e uma mosquitada sedenta que ataca em nuvem, sem cessar, infernizando a vida da população. Apesar disso tudo, os candidatos a cargos eletivos não cessam de declarar, como o cobrador do ônibus, que "essecarasoueu", ou seja, aquele que vai consertar tudo e dar ao povo a felicidade com que ele sonha.

Se algum deles ajudar a tapar pelo menos uma vala, sairá da minha lista particular de ratos de esgoto.

* Macéias Nunes é Jornalista e Pastor batista

Atualizada: Quinta, 14 Mai 2015 07:52
SOMA Notice / Nota da Soma

This site uses cookies to ensure the best experience. By continuing to use this website, you agree to their use. Learn more about our privacy policy. / Este site utiliza cookies para garantir a melhor experiência. Ao continuar a utilizar este website, você concorda com a sua utilização. Saiba mais sobre nossa política de privacidade.