A proclamação do Reino de Deus
- Por Redação
- Publicado em missões transculturais
O bispo anglicano da Diocese do Recife, Robinson Cavalcanti, divulgou palestra ministrada em 02/10, no 6º Congresso Brasileiro de Teologia Vida Nova, na cidade de Águas de Lindóia (SP): "Se é verdade que toda a humanidade, genericamente, está sob o Reino de Deus, em seu sentido cósmico, terráqueo e histórico, não é verdade que toda a humanidade esteja vinculada ao Reino de Deus, em sua relação com o Messias, os seus valores e a esperança escatológica. Nem todos os cidadãos dos Estados terrenos possuem a cidadania celeste. A humanidade continua expulsa do Paraíso. Dentre seus componentes, muitos, inclusive, chegam a negar a própria existência do Rei e do Reino ou afirmam uma lealdade a uma profusão de pretensos reis e pretensos reinos, equivocados quanto ao seu estado atual e o seu estado futuro: ateus, agnósticos, materialistas, politeístas, idólatras, magos, adivinhos, supersticiosos, sincréticos". Leia, na íntegra.
Por mais que possa hoje ser considerado “politicamente incorreto”, houve um Pecado Original, uma Queda, muitos estão “mortos em seus delitos e pecados”, perdidos, carentes de salvação. Consciente, ou inconsciente, essas multidões estão vinculadas espiritualmente ao Principado das Trevas, e seus anti-valores, e, após a morte habitarão em sua capital: o Inferno. Isso pode parecer antiquado e atentatório aos direitos humanos, mas está no Diário Oficial do Reino de Deus, veículo de comunicação cada vez mais desacreditado pela mente pós-moderna.
Para o mundo desenvolvido e secularizado, a salvação equivale à civilização e a civilidade. Ninguém, os Estados Unidos, por exemplo, pensa em tentar converter uma pessoa branca, de nível superior, proprietária de uma casa e um automóvel, eleitora do Partido Republicano, defensora da pena de morte e do direito de portar armas, e que não tem condutas consideradas anti-sociais. Essa pessoa, no imaginário popular, já está “salva”, e o que se deve fazer é enviar missionários para a África.
Li há alguns anos o comentário de uma revista evangélica, elogiando o fato de que, após muitos anos, alguém havia pregado sobre o Inferno em um congresso missionário, e que esse orador “somente poderia ser um brasileiro”. Ouvi, recentemente, de um líder evangélico uma palavra de censura: “não devemos falar do Inferno para as audiências atuais. Isso não comunica. Além do mais as pessoas já vivem aqui os seus infernos particulares”.
O Rei é um Rei perfeito, e um Rei amoroso. Uma espada flamejante vedou à humanidade a porta de retorno ao Paraíso. Hoje há uma porta aberta, e no lugar da espada flamejante, há uma cruz sangrenta. A porta é o próprio Príncipe da Paz. A rejeição ao Messias, não é algo que acontece apenas com os de fora. Não faz muito que, na Catedral Nacional, em Washington, um pregador afirmou: “Foi uma coisa horrorosa o fato do evangelista ter colocado na boca de Jesus essa frase infeliz: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, e ninguém vem ao Pai senão mim”. Essa frase é arrogante, imperialista e politicamente incorreta”.
Equivocam-se os universalistas quando pretendem que todo o Povo seja considerado Povo de Deus, ou que todos caminham de volta ao Paraíso, a despeito de suas crenças ou descrenças. Equivocam-se quando negam a realidade tanto do Pecado Original, quanto dos pecados atuais. Equivocam-se quanto negam o papel único de Jesus de Nazaré na economia da salvação. Equivocam-se quando negam a necessidade de mudança de vida, de santidade, de transformação. E o nome desse equívoco chama-se heresia, falso ensino, falsa doutrina, e isso deve ser dito, porque não dizê-lo seria trair a verdade, trair ao Rei, e demonstrar falta de amor para com os próprios equivocados, que necessitam de ser confrontados com a verdade, necessitam de uma chance para a reconciliação com o Rei e a vinculação ao Reino.
O Rei amoroso está chamando a todos de volta. O Filho do Rei estava vivo e morreu, para que os que estão mortos possam reviver.
E quem serão os mensageiros, os porta-vozes, os embaixadores, da mensagem do Reino? O Diário Oficial do Reino nos diz que serão os que integram a nova e eterna Aliança, a Igreja do Príncipe da Paz. Ele poderia enviar legiões de anjos, ao som de trombetas, assessorados pelos marqueteiros celestiais. Seria um show de comunicação. Bem mais rápido, bem menos trabalhoso, e, talvez, mais eficiente. Mas o Rei não quis assim. Aos chamados que escutaram a sua voz, aos que nasceram de novo, Ele os devolveu como seus mensageiros no meio do mundo; Ele nos devolveu à História. E isso é uma ordem, não uma sugestão. Assim como o Pai o enviou, Ele nos envia esvaziados, encarnados, revestidos de poder, na diversidade dos nossos dons e vocações. Não fazê-lo, mais do que acomodação, é desobediência e inautenticidade. Há dois mil anos que isso acontece, e geralmente se paga um preço.
A primeira e central tarefa da Igreja é o anúncio, é a proclamação das Boas Novas do Reino de Deus. O anúncio não esgota o conteúdo da missão, mas sem ele não haverá gente para realizar as outras tarefas: a de batizar e integrar os convertidos a uma comunidade de fé; a de ensinar todo o conselho de Deus; a de despertar no coração dos fiéis respostas de misericórdia às necessidades humanas; a de curar os enfermos do corpo, da mente e da alma; a de libertar as pessoas do poder do Príncipe das Trevas; a de defender a vida e a integridade da criação; a de denunciar as estruturas iníquas da sociedade e os males das culturas.
Tudo isso nos foi confiado. Tudo isso integra o conteúdo da Missão Integral da Igreja, mas a missão começa com o evangelismo, quando se procura persuadir os pecadores ao arrependimento e à fé na graça suficiente evidenciada na cruz e no túmulo vazio. Por todos os meios, métodos e abordagens, por palavras e por ações, não podemos dizer diferente do apóstolo Paulo: “Nada vos tornei conhecido, senão a Cristo, e a esse crucificado”.
Missão Integral que deve se acompanhada de uma Espiritualidade Integral, que inclui a Adoração, a Reflexão e o Serviço, evitando-se os unilateralismos do misticismo, do academicismo e do ativismo.
A tarefa de proclamação do Reino vive uma de suas crises mais graves. Nega-se a autoridade das Sagradas Escrituras, a unicidade de Jesus Cristo como Senhor e Salvador e a unidade da Igreja como agência especial do Reino. A Grande Comissão é condenada.
Um documento contemporâneo de um dos ramos do Cristianismo definiu a Igreja como: “Um ente social, cultural, afetivo e litúrgico, onde não há lugar para doutrinas, nem normas de comportamento”. Esse mesmo documento também definiu a Bíblia como um livro da tradição religiosa judaica: “útil para a devoção privada e para o uso litúrgico público, mas a quem não se deve buscar base para definir doutrinas ou normas de comportamento”. Outro texto institucional afirma que: “os ensinos morais contidos na Bíblia foram apenas válidos para o tempo dos seus autores, e que não se aplica a situações atuais, especialmente no tocante à Sexualidade Humana”.
Devemos reconhecer, por um lado, que vivemos hoje – como sempre – em um mundo hostil ao Rei. O Islã está em alta, há um ressurgimento das grandes religiões tradicionais, como o Bramanismo e o Budismo, há um crescimento do fanatismo violento, há uma disseminação do esoterismo, de cultos exóticos, de seitas várias, do sincretismo. O fim do materialismo sistemático não abriu, necessariamente, os corações ao Evangelho, nem trouxe de volta às Igrejas, as multidões nominais. Presenciamos um materialismo prático, consumista, e uma espiritualidade vaga e sincrética. Como no Areópago de Atenas, há uma profusão de deuses e um Deus desconhecido. O Ocidente, ao nível das instituições estatais e de setores da Sociedade Civil, vem conhecendo uma escalada da ideologia Secularista, anti-religiosa e, muito mais, anticristã, a empurrar a fé para o recôndito da alma e o interior dos lares e dos templos, vedada a sua manifestação na esfera pública, condenada à irrelevância.
Mas, por outro lado, há uma hostilidade ao Rei dentre os que se pretendem integrar o seu povo. Um ministro de uma Igreja cristã se pretendeu ser, ao mesmo tempo, cristão e islâmico, e isso poderia ser possível em sua cabeça, que nega todos os ensinos cristãos que são rejeitados pelos discípulos de Maomé. Outro ministro de uma Igreja cristã, em um culto dito macro-ecumênico, pediu públicas desculpas aos hinduístas, porque no passado os missionários tentaram convertê-los. Um líder mundial cristão afirmou quer as pretensões do Cristianismo são ofensivas aos seguidores do Islã. A agenda do setor dito Liberal pós-moderno da Igreja, inclui o universalismo, a defesa da agenda homossexual (GLSTB) e a promoção do macro-ecumenismo, multiculturalista, de braços dados, no caso brasileiro, com os “pais-de-santo”, quando essa não foi a atitude dos apóstolos com os sacerdotes de Diana. E a resposta a esse ceticismo e a esse relativismo não deve ser o fanatismo.
Os obstáculos ao anúncio do Reino de Deus não estão apenas fora, no que chamamos de “mundo”, mas dentro da própria Igreja, que, em muitos lugares está implodindo em suas negações. Testemunhamos, nessas conjunturas, o suicídio de uma religião.
O que fazia a Igreja Primitiva “cair na graça de todo o povo”? A sua unidade, o seu amor, a sua verdade, a sua mensagem, a coragem para assumir riscos. Hoje, podemos estar caindo na “desgraça de todo o povo”, por nossos próprios erros, pedras de tropeço na comunicação do Reino. Isso inclui a desonestidade da exploração das pessoas simples e crédulas, os escândalos financeiros, a ostentação, o mau exemplo ao ocupar funções no Estado.
Quando nos detemos na Oração Sacerdotal de Jesus, percebemos a sua ênfase na Unidade. Como Ele e o Pai eram um, a Igreja deveria ser uma com eles, e uma entre si, “para que o mundo creia”. Repito: “para que o mundo creia”. Jesus Cristo criou uma só Igreja, e pretendeu, no Final, se encontrar com uma noiva, e não com um harém. Chegamos depois de mil e seiscentos anos, à Reforma Protestante, com apenas quatro ramos de Cristianismo em todo o mundo: os Bizantinos, os Pré-Calcedônios (como os Coptas, os Sirianos e os Armênios), os Pré-Efesianos (Nestorianos) e os Romanos. Terminamos a Reforma com oito, com o acréscimo de Luteranos, Anglicanos, Calvinistas e Anabatistas. Chegamos ao século XVIII com algumas dúzias, e, daí em diante, deu a louca na zorra total. Estudiosos falam de 18.000 ou 38.000 denominações, sub-denominações, jurisdições e ministérios dentro do guarda-chuva da Cristandade, fora as seitas. E, ainda, queremos que o mundo creia?
A debilidade da Reforma em tratar da eclesiologia, levando em conta os dois mil anos da História da Igreja, levando em conta o consenso dos fiéis, deu no que deu: o denominacionalismo, como fenômeno descontrolado. Denominação não é um conceito teológico, mas sociológico, jurídico e administrativo. E essa idéia de se justificar um caos institucional, fruto do espírito capitalista da “livre empresa” e não dos ensinos bíblicos, ou da vontade de Deus, com o apelo para uma “unidade espiritual”, uma tal de “igreja invisível” (que deve ser formada por fantasmas), sejamos honestos, é um malabarismo mental, para fugir da pecaminosa realidade e da dor de consciência, e seu fundo é o platonismo. Nada pode justificar o denominacionalismo. Afirmar que “Deus me mandou criar uma denominação” é uma blasfêmia! O nome desse pecado é Cisma: o pecado contra a unidade, em nome de projetos pessoais ou de ridículas doutrinas secundárias como a temperatura da água do batismo, ou se esse deve ser ministrado por chuveiro, mangueira ou spray...
Mas, na Oração Sacerdotal, há outra preocupação: o envio do Espírito da Verdade, que nos conduziria a toda a verdade. Somos advertidos pelos apóstolos contra os falsos profetas e os falsos ensinos. E o pecado contra a Verdade chama-se Heresia. E um mal nunca justifica outro: a unidade com heresia é uma falsa unidade, porque a heresia é um cisma material, a ruptura da unidade essencial; a Verdade com uma Igreja dividida, o cisma formal, é uma negação da Verdade. E essa é a tragédia dos nossos tempos. E ainda queremos que o mundo creia? Onde está o Reino? Onde está a vontade do Rei. Que tipo de súditos somos nós que desobedecemos, escancaradamente, ao Rei? Que exemplo e que imagem estamos passando para os que ainda estão fora do Reino?
Uma questão mais central é: crêem ainda os cristãos na mensagem da cruz? Somos realmente convertidos? Fomos realmente alcançados? Porque, se o somos e o fomos, queremos, pelo poder do Espírito Santo, obedecer à Grande Comissão, ir até os confins geográficos, culturais e sócio-econômicos da terra. Essa dependência do Espírito Santo, porém, é reduzida pela dependência de métodos e macetes (geralmente importados), em suas ondas uniformizantes periódicas.
Outra questão central: a que Reino nós estamos anunciando e convocando? O Reino egoísta dos privilegiados “filhinhos do papai celestial”, sempre saudáveis, sempre prósperos e sempre nos cargos de mando, qual os antigos judeus que se vangloriavam de serem “filhos de Abraão”? Ou estamos anunciando a necessidade de arrependimento (que não é nem sentimento de culpa, nem remorso), de renúncia ao eu, de seguimento das pegadas do Mestre, compartilhando suas dores e sua cruz, descobrindo e exercitando dons no Corpo e vocações no mundo a quem somos enviados para amar e servir?
Além da revalorização da Palavra e da autenticidade da experiência, além da conversão e da obediência, necessitamos redescobrir e revalorizar a História da Igreja, toda ela. O que podemos apreender, pela imitação dos acertos e pela não imitação com os erros, com as gerações que nos precederam, tanto no mundo, quanto no próprio Brasil?
Em um século e meio, a geração dos Apóstolos, a geração seguinte dos Pais Apostólicos, e a geração seguinte dos primeiros Pais da Igreja, haviam estabelecido, segundo o princípio “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós”, alguns pilares que sustentaram a Igreja e a sua missão por muitos séculos: o estabelecimento do Cânon do Novo Testamento e o fechamento do Cânon Bíblico; a afirmação dos Sacramentos do Batismo e da Ceia do Senhor; a definição das doutrinas centrais contidas no Credo Apostólico e no Credo Niceno, e a forma Episcopal de governo.
Ao longo dos séculos, sem negar esses pilares centrais, as Igrejas Pré-Reformadas do Oriente e do Ocidente acrescentaram, nas palavras dos Reformadores, “erros, desvios e superstições, sem, contudo, deixarem de ser ramos autênticos da Igreja de Cristo”. A Reforma (que vai se dividir em reformas) veio para corrigir esses “erros, desvios e superstições”, pretendendo um retorno à herança apostólica, mas acabou cometendo seus próprios equívocos, jogando o bebê junto com a bacia e a placenta, chegando hoje aonde eles nunca pretenderam chegar: às heresias, aos cismas e a novos “erros, desvios e superstições”, com alguns dos que se pretendem ligados à Reforma promovendo um retorno ao mundo pré-reformado, com sua magia, sua simonia e suas indulgências.
Em saco e cinza, em arrependimento pelo pecado de proclamarmos pessoas e organizações, de proclamarmos usos e costumes e não a Graça, afirmando que as utopias somente têm valor quando são antecipações possíveis que apontam para a Parousia, devolvamos o tema do Reino de Deus ao centro das preocupações e ensinos da Igreja, e proclamemos a todos que o Reino é chegado! E que um dia o Rei voltará para consumá-lo! (Palestra ministrada pelo Bispo Robinson Cavalcanti no Congresso de Teologia da Edições Vida Nova 2008)